A sanção do presidente Jair Bolsonaro à lei que permite que usuários de drogas sejam internados mesmo a contragosto, provoca debates sobre o tema num cenário em que se indaga pontos como a real capacidade operante das estruturas de gestões públicas, além de recursos. Outro item de discussão se atém aos resultados da lei nesse formato, levando em consideração a “reação” de especialistas no assunto contrários às mudanças. O que diz a lei, sua aplicação, o funcionamento no Estado de Mato Grosso, além de braços à instituição de ações como as comunidades terapêuticas – no chamado Terceiro Setor, passam pela análise do presidente da Comissão de Política sobre Drogas da OAB Seccional Mato Grosso, Nestor Fernandes Fidelis, nesta Entrevista da Semana ao FocoCidade. “Conforme explicamos, tais internações somente devem ocorrer em situações extremas, segundo a visão da Organização Mundial da Saúde”, observa o advogado. Nestor Fidelis assinala questões de alerta, como em relação ao formato da legislação de publicidade no campo das drogas “lícitas”. “As propagandas de bebidas alcoólicas são as mais bem produzidas e, por isso mesmo, as mais premiadas. Além disso, conseguem atrair as pessoas de forma sedutora”, considera. O papel da OAB nesse processo e a busca de apoio para avanços no setor também são pontos de destaque sob o presidente da comissão. Confira a entrevista na íntegra: A lei que permite que usuários de drogas sejam internados, mesmo quando não querem, provoca polêmica com apontamentos de que os resultados podem não ser satisfatórios. Qual sua opinião? Na nossa opinião, e segundo o que dispõe a lei, as internações são as últimas medidas a serem adotadas e tão-somente em casos extremos devem ocorrer as internações involuntárias, aplicáveis naquelas situações em que o ser humano não consegue mais responder por si mesmo e necessite, para permanecer vivo e com um mínimo de qualidade de vida, passar pela desintoxicação, sempre com vistas ao direcionamento de um médico responsável. Essa disposição legal não é nova, eis que desde o advento da lei nº 10.216/2001 já existia tal possibilidade. Na condição de “internado a força” um paciente pode sofrer outros reflexos além dos efeitos da droga, como de “revolta” sobre o ato. Como considera esse aspecto? Conforme explicamos, tais internações somente devem ocorrer em situações extremas, segundo a visão da Organização Mundial da Saúde. Sem dúvida, a revolta e outros eventos são possíveis de ocorrer, mas o que se busca é proteger um bem maior, ou seja, a vida, a saúde. Não raro, pessoas se negam a receber medicamentos necessários para o restabelecimento de sua saúde. Isso ocorre desde as crianças que não gostam de remédios amargos, muito menos das injeções. No entanto, quando um ser humano está colocando em risco a sua vida e, de forma direta ou indireta, a de outras pessoas, não demonstrando mais condições de reação por si mesma, será possível que um médico prescreva a internação involuntária como medida necessária e urgente. O país está preparado para isso em dois pontos em especial: estruturas de saúde e em relação aos profissionais? Não são novidades em nosso país. Como visto, já existem tais formas de internação há quase vinte anos. Ocorre que neste momento a nova lei facilita o processo de internação. De qualquer modo, sabemos que as instituições de saúde pública estão muito aquém do mínimo necessário para dar um atendimento de maior qualidade. Os servidores públicos, sobretudo da saúde mental, são verdadeiros heróis que se empenham ao máximo, fazem quota, buscam ajuda informal para poder fazer o que lhes é possível, no entanto, não podemos permitir que isso continue acontecendo, conquanto a demanda seja crescente. A Comissão de Políticas sobre Drogas da OAB/MT tem se reunido internamente, mas também com autoridades e agentes públicos, tendo buscado conhecer de perto a realidade, oferecer ajuda advocatícia institucional que lhe cabe, mas também com a intenção de pode cobrar do Poder Público que faça o que lhe compete realizar. O senhor escreveu recente artigo em que trata do tema, observando o rol de critérios sobre como deve proceder o sistema de saúde. Ocorre que a saúde pública enfrenta problemas, leia-se recursos. Acredita que as gestões públicas terão condições plenas de avançar para cumprimento da legislação? Realmente, conforme acabamos de afirmar, não basta existir boa lei sem condições financeiras para que estas sejam cumpridas, de forma similar com o que ocorre com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Todavia, a lei nasce de anseios sociais e de fatos concretos que precisam ser resolvidos. Por isso ela prevê autorizações para certas ações, ou mesmo determina sejam realizadas outras. Por outro lado, podemos nos perguntar: o que fazemos em nossas famílias quando uma pessoa está doente e temos pouco dinheiro para pagar o tratamento? Cortamos despesas menos urgentes, tais como passeios, deixamos de comprar coisas que podem ser adquiridas quando a situação financeira melhorar, paramos de realizar festas, etc. Na administração pública deve ocorrer o mesmo, e com maior eficácia, porquanto se trata de administrar o orçamento que é de todos. A Constituição do Brasil já estabelece que deve haver a aplicação de um percentual mínimo em atividades da saúde pública (menor do que em educação). E o que constatamos é que estados e municípios tem ultrapassado tais percentuais sem que logrem resolver com a eficiência necessária os problemas. Daí a necessidade de se trabalhar com o Terceiro Setor, ou em consórcios públicos, bem como com as parceiras com a iniciativa privada, dentre outros métodos menos burocráticos que já deveriam ser considerados normais em pleno ano de 2019, mas principalmente, abrindo mão de vaidades em prol do coletivo. Como deve funcionar a lei em relação às comunidades terapêuticas? As comunidades terapêuticas são instituições do chamado Terceiro Setor, pois não são empresas, mas também não faz parte do Poder Público, conquanto realize atividades que poderiam estar sendo, ao menos em parte, prestadas pela administração pública. Elas surgiram, justamente, pela escassez ou total falta de atendimento aos usuários de drogas, sendo mantidas, geralmente, por instituições de caráter religioso, o que não confere direito de a direção da instituição obrigar o seu acolhido a adotar ou realizar práticas religiosas que não sejam de sua vontade. Então, as comunidades terapêuticas têm por finalidade o acolhimento de pessoas que voluntariamente buscam ajuda para lidar com o vício. Convivendo com pessoas que vivem o mesmo desafio, em ambiente residencial propício à formação de vínculos, realizando atividades educativas e de desenvolvimento pessoal, são muitos os relatos de pessoas que lograram êxito em se libertarem do consumo de drogas. Infelizmente, como até hoje muitas dessas instituições funcionam de modo informal, também por não serem, até este momento, reconhecidas perante a lei, não são poucos os casos de maus tratos, de trabalho excessivo sob o argumento de que o acolhido está em trabalho-terapia, bem como de punições descabidas. Logo, o trabalho das federações estaduais, mas também dos conselhos municipais e estaduais, dos órgãos de vigilância sanitária e de defesa dos direitos humanos (além da OAB e do MP) se torna de grande relevância para que as sérias e boas comunidades terapêuticas não sejam prejudicadas por conta do mau serviço prestado por aquelas que insistem em desobedecer as leis. Há necessidade de um projeto terapêutico e não somente oração e convivência em grupo? Essa pergunta é muito pertinente. Toda religião tem muito a agregar para o cidadão que esteja realmente interessado em se tornar uma pessoa melhor. Porém, no caso do usuário de drogas, que tem uma grande facilidade de manipular os pensamentos das pessoas que com ele convivem, é de suma importância que para cada pessoa seja realizado seu próprio planejamento terapêutico, sempre tendo em vista a reinserção do cidadão à sociedade, com independência, autonomia das emoções e firmeza de caráter. Respeitamos e toleramos o pensamento daqueles que entendem que tal visão é excessivamente moralista e fora da realidade, ou que levantem a tese de que cada pessoa deva decidir por si mesma. No entanto, estamos nos referindo ao modo de atendimento em comunidades terapêuticas, isto é, àquela instituição para a qual o usuário buscou acolhimento e ajuda, razão pela qual a disciplina é fundamental, pois não se trata de uma colônia de férias. Em relação à publicidade de álcool, por exemplo, é fomentadora do consumo mesmo com alertas de riscos à saúde. Então na prática, não deveria prevalecer regras ainda mais rígidas? Pesquisas diversas, no Brasil e no mundo, demonstram que o uso da droga que mais leva aos homicídios ou feminicídios, que mais desagrega as famílias, que provoca mais mortes no trânsito, que gera mais despesas para o Poder Público é a que se refere ao uso do álcool. Não por outro motivo aqueles que vivem de fabricar e comercializar bebidas alcoólicas tem em crianças e jovens o seu principal público no que tange às ações de publicidade. Cada vez mais crianças e jovens buscam o uso do álcool por motivos diversos, mas, geralmente, mesmo sem gostar do sabor, para se sentirem pertencentes aos grupos em que a maioria das pessoas consome tal droga (chamada de lícita, porque é permitida a sua industrialização e comercialização). Há poucos dias uma pesquisa comprovou que a proibição de publicidade de cigarro de tabaco em TV e rádio gerou a diminuição do consumo dessa droga e de pessoa com doenças geradas pelo uso dela. Já com o álcool ocorre o contrário. As propagandas de bebidas alcoólicas são as mais bem produzidas e, por isso mesmo, as mais premiadas. Além disso, conseguem atrair as pessoas de forma sedutora. Quando o Ministro Osmar Terra apresentou o projeto de lei complementar nº 37, ainda como deputado, em 2010, havia no texto a previsão de proibição da publicidade de bebidas alcoólicas em TV, rádio, espaços esportivos, etc. Mas tais dispositivos do projeto de lei foram derrubados graças ao empenho das grandes empresas que lucram muito com a venda das bebidas alcoólicas, logrando o apoio de deputados, inclusive de ex-atletas muito conhecidos de todos. Está aí mais um motivo para que os Conselhos sejam ativos e realmente representem a sociedade, do mesmo modo que a imprensa tem um papel fundamental nesse contexto, apesar de que os grandes meios de comunicação são mantidos, também, pelas indústrias da bebida alcoólicas. Então, estamos diante de uma situação que demonstra a necessidade de evolução moral, sim, de cada pessoa que vive em sociedade, pois o álcool também mata quem a fabrica ou divulga. Mais especificamente sobre a legislação, quais os passos para a internação seguindo a nova legislação? A lei diz que as internações somente serão realizadas em unidades de saúde dotadas de equipes multidisciplinares, devendo ser autorizada por médico. Na internação voluntária haver uma declaração assinada pelo próprio usuário e ela perdurará até o período determinado pelo médico responsável, mas a própria pessoa pode manifestar por escrito o desejo de interromper o tratamento. Na internação involuntária ocorre sem o consentimento do dependente. Ela se dará a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, com exceção de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida. Ela deve ser realizada após a formalização pelo médico e será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras medidas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde. Sua finalidade é desintoxicar o usuário, tendo prazo máximo de noventa dias, mas a família pode requerer que o médico autorize a interrupção a qualquer momento. Qual o papel da OAB nesse processo? Como já dissemos, a OAB/MT criou uma comissão, que ora presidimos, para lidar com especificamente com essas questões. Temos aprendido e contribuído de diversas formas, por a questão das drogas possui várias facetas. A OAB/MT, por meio da Comissão de Políticas sobre Drogas, tem apoiado os projetos de prevenção existentes na sociedade, participando de atividades, apresentando para escolas ou pedindo apoio financeiro de empresas. Existem excelentes projetos, tais como o Proerd, o De Cara Limpa Contra as Drogas, Rede Cidadã, Redes Digitais pela Paz, dentre outros. Quanto às necessárias ações de repressão, a comissão já realizou audiências públicas em Cuiabá e em Cáceres, dialogando com a sociedade e requerendo das autoridades, inclusive, o fortalecimento das ações no Pantanal, na fronteira seca e nos rios, mas também para a instalação de base área em Mato Grosso. No tocante ao tratamento, que é um dos braços das políticas sobre drogas, juntamente com a Comissão de Saúde, temos realizado reuniões técnicas, aprendendo com autoridades e servidores públicos da saúde mental, mas também com as comunidades terapêuticas, com representantes dos Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e outros atores deste cenário que nos convida a participar somando, abrindo mão muitas vezes de teses e pensamentos personalíssimos para que a saúde e o bem social prevaleçam. Nossa comissão está aberta ao aprendizado e a contribuir com conhecimento jurídico para com as instituições que queiram laborar em sintonia com a lei. |
Autor(es): Da Redação |
Fonte: http://fococidade.com.br/materia/32810/as-internacoes-sao-as-ultimas-medidas-a-serem-adotadas-e-em-casos-extremos-alerta-nestor-fidelis |