Aparentemente, as pessoas se reúnem em família por uma fatalidade, ou por uma conveniência divina da qual os entes envolvidos não tem conhecimento, fazendo valer aquela máxima musical que diz “eu não pedi para nascer”.
Penso de modo muito diverso!
Pelo que tenho estudado, pelas minhas experiências e aprendizados, realmente é Deus que reúne as pessoas em família, mas essa reunião não é algo simples. Ao contrário, trata-se de um fenômeno muito complexo, envolvendo sentimentos que necessitam ser ressignificados, bem como compreendendo o reencontro com seres muito amados já de outros tempos, a fim de que todos cresçam intelectualmente, moralmente, mas sempre ajudando-se uns aos outros.
Sou filho de Walter e Mari Fidelis. Ele, um paulista de Ibitinga e que vivia sua juventude em Santos, já trabalhando como radialista no Guarujá, quando meus avós Geraldo e Isaura, adquiriram terras na fronteira do Brasil com a Bolívia, no gigantesco município de Cáceres. Vieram para Mato Grosso, portanto, meus avós, meu pai, minha tia Voleidi já casada o tio Stefano, além de dois aventureiros e corajosos amigos do meu pai. Essa história merece um livro, um filme, algo do tipo. Há diversos relatos interessantes sobre a viagem, a chegada em Cáceres em 1954, os primeiros desafios no meio do mato, literalmente, a abertura das estradas, o esforço para trazer mais pessoas que formaram o que hoje é a população dos municípios de Lambari D’Oeste, Rio Branco, Salto do Céu, dentre outros, bem como os trabalhos que resultaram na criação de associações e cooperativas de trabalhadores rurais. Logo meu pai se tornou membro do Rotaty Club, da Maçonaria e foi eleito vereador mais votado.
Meus pais se casaram em 09 de maio de 1959 na amada cidade de Cáceres. Minha mãe é cacerense, tendo vivido sua infância na fazenda que ficava na fronteira com a Bolívia. Inclusive há duas coisas curiosas: havia dúvida quanto ao fato das terras pertencerem ao Brasil ou à Bolívia; minha mãe e seus nove irmãos falavam espanhol e português. Há um vídeo no qual meu avô Nestor Cardoso Leal (também cacerense nascido em 24/09/1895) fala sobre isso. Minha avó Góia Ortiz era uma menina de menos de quinze anos de idade quando se casou com meu avô, com quase trinta anos completos. Eles foram pioneiros em Cáceres da região em que hoje é o município de Porto Esperidião.
Logo se vê que tenho raízes nessa bela e rica região oeste de Mato Grosso, mas não nasci em Cáceres, como muitos pensam. Nem eu nem meu irmão Geraldo.
Ocorre que o então vereador Walter Fidelis era um idealista pelas liberdades democráticas, pela valorização do trabalhador do campo e do servidor público, quando o Brasil passava por momentos turbulentos que vieram a gerar a tomada do poder pelos militares. Um detalhe interessante é que naquele ano de 1964 o então presidente da República João Goulart, o Jango, adquiriu terras rurais em Cáceres, fato que motivou meu pai a tentar atrair o presidente para o acolhimento dos cacerenses e, com isso, de algum modo lograr benefícios de infraestrutura para a população. Por conta disso, como vereador, meu pai levou à Câmara Municipal a proposta de concessão de título de cidadão cacerense ao Jango, tendo obtido a aprovação de seus pares... no início de 1964.
Aguerrido, falador, corajoso, defensor de liberdades, um dia meu pai, que também era aviador, chegava de uma viagem em Cáceres e após descer de seu avião foi conduzido por um oficial do Exército para prestar depoimento no batalhão. Enquanto isso, um tenente estava na porta da casa onde meus pais viviam, cuidando para que ninguém dali saísse. Foram horas de depoimento, na busca de tentar arrancar alguma informação que pudesse levar a suposição de que meu pai era uma pessoa perturbadora da ordem ou comunista. É claro que os militares não conseguiram nada, até o momento em que o comandante do Exército adentrou-se à sala onde o interrogatório estava acontecendo e teve a seguinte conversa com meu pai:
- Eu sou o Coronel Barão, sou carioca e vim destacado para trabalhar em Cáceres, no Batalhão da Fronteira. Quando cheguei aqui, perguntei sobre alguém que pudesse me apresentar a região da fronteira, os distritos, os postos de comunicação, etc., e me disseram que um tal senhor Nestor Cardoso poderia me ajudar. Eu o procurei, o conheci e acabei fazendo uma das maiores amizades da minha vida. Eu sei que ele é seu sogro, conheço sua esposa desde mocinha e me tornei compadre do seu sogro. Também sei que você não é comunista, mas sim um idealista que sabe muito bem usar as palavras. Mas este momento não é adequado para que você esteja por aqui. Não é o momento da democracia, mas de uma intervenção militar que não veio para ficar por vinte dias ou vinte meses, mas deve ficar no poder por cerca de vinte anos. Portanto, como amigo de sua família, lhe recomendo que deixe Cáceres com a maior brevidade possível.
Sensatos, meus pais foram para São Paulo/SP. Eu agradeço a eles até por isso, sem o que, certamente, eu não teria nascido em 1975 como filho deles, nem meu irmão, que nasceu em 1968.
Meu pai trabalhou como corretor de terras, tendo levado muitas pessoas de diversos estados da região sudeste e sul para comprar terras em Mato Grosso. Como obteve êxito nos negócios, resolveu voltar a estudar. Fez um cursinho pré-vestibular e conseguiu entrar na Faculdade de Direito. Foram quatro anos e meio apenas estudando, sem a necessidade de trabalhar, fato que permitiu a ele se tornar o melhor aluno da Faculdade e professor mesmo antes de ter se formado, a pedido de seus próprios colegas que o homenagearam quando da colação e grau.
Como meus avós paternos e maternos continuavam em Cáceres, onde havia a necessidade de também colaborar com os trabalhos da propriedade rural, meu pai jamais perdeu o contato com as pessoas da região. Ele tinha um escritório de advocacia na Praça Duque de Caxias, em Cáceres, e vivia entre Mato Grosso e São Paulo, onde minha mãe, meu irmão e eu continuávamos morando, até que veio o ano de 1982 e ele foi eleito deputado estadual pelo PMDB, num momento em que a vivência político-partidária era muito forte no Brasil.
Então, eu me mudei com minha família para Mato Grosso em fevereiro de 1983.
Vivi com eles todos aqueles momentos da luta pela redemocratização do Brasil, da construção do Estado Democrático de Direitos, das passeatas, dos comícios, reuniões. Eu me recordo muito bem do comício das Diretas Já ao lado da Catedral de Cuiabá, do comício pela eleição indireta de Tancredo Neves que lotou a avenida Generoso Ponce, bem como do retorno daqueles políticos democratas para apoiar a candidatura de Dante de Oliveira ao cargo de prefeito de Cuiabá ainda em 1985, quando a avenida Mato Grosso foi tomada por pessoas que se interessavam pela política e sentiam-se parte das decisões do momento. Quantas reuniões vi em nossa casa? Eu estava quase todos os dias da semana na Assembleia Legislativa, ouvindo, participando, querendo ajudar no que era possível.
Sem querer me delongar mais, apenas vale registrar que meu pai, tendo a generosidade como uma de suas principais forças de caráter, esteve entre os mais votados para a Assembleia Nacional Constituinte, mas por essa questão da legenda político-partidária ficou como suplente, mesmo com outros dois candidatos, cujos votos somados não alcançavam a votação do meu pai em 1986, sendo declarados eleitos. Então ele foi Secretário de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social, trabalhando com as políticas públicas no Sine, na então LBA, mas também era responsável pela política pública de defesa do meio ambiente, eis que ainda não existia a Fundação do Meio Ambiente, tampouco a secretaria. Aliás, ele teve uma postura que até hoje é significativa para mim, quando, acolhendo o parecer técnico do Conselho Estadual, determinou o fechamento dos garimpos que poluíam as águas do Pantanal.
Depois meu pai foi eleito prefeito de Cáceres com 68% dos votos, mesmo havendo outros quatro valorosos candidatos na disputa. Fez, então, uma gestão voltada para o social, para a educação, para a infraestrutura, tendo conseguido a aquisição do terreno para a construção do Hospital Regional, bem como a consolidação da Unemat em Cáceres. Construiu o Caic, asfaltou ruas da cidade, enfrento perseguição política, sofreu, cresceu, cumpriu sua missão.
Em tudo, aprendemos muito com ele com suas decisões. Meu pai me ensinou a amar as pessoas, os animais, as plantas. Ele influenciou positivamente a mim e a meu irmão, que hoje é um juiz de direito que cuida de pessoas, que atende às famílias dos reenducandos, que goza de prestígio no seu meio, mas também de toda a sociedade, justamente por fazer o que aprendeu com meus pais, aliado aos estudos técnicos essenciais para bem desempenhar as funções de magistrado.
Minha mãe é o acolhimento em pessoa... exageradamente! Supermãe não somente de mim e do meu irmão, mas de tantas pessoas, amigos, primos. Ela deve ter aprendido com a mãe dela, que naquele tempo em que não existia recurso algum nem comunicação alguma para cuidar das pessoas, ela, madrinha de todo mundo, era enfermeira, médica, conselheira, líder de toda a comunidade do Porto Esperidião. Minha mãe é o amor que aconchega, a alegria que sorri mesmo sofrendo, corinthiana apaixonada e política nata.
Tudo começou na família. Sou “produto” desse meio. Melhor, sou filho desse amor. Emocionado neste momento, agradecido a Deus por essa benção, escrevo este texto ao mesmo tempo em que peço forças a Jesus para honrar o esforço de cada uma dessas pessoas altamente significativas em minha existência e prosseguir esse ciclo virtuoso da paz, do progresso, do amor, da preservação da recursos naturais, do respeito com muito trabalho!
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